Um detetive bem argentino
- Traduzido por Heitor Levy
- 22 de jul. de 2015
- 4 min de leitura
Meu interesse na cultura argentina é já velho e nasceu na biblioteca da casa de minha família, muito sob a influência de meu pai. Desde então procuro me aproximar do que é cá produzido em termos de literatura. Um de meus caminhos habituais é a leitura das seções dedicadas à cultura na versão eletrônica do jornal Página12. Foi justamente aí que encontrei o texto que decidi traduzir, numa tentativa de aproximar o leitor brasileiro do escritor/desenhista argentino. Tentativa que, se por lado procura preencher (ainda que minimamente e quiçá de maneira vã) esse espaço entre culturas vizinhas, procura também preencher este espaço dentro de mim.
Já faz quatro meses que vivo em Buenos Aires e acomodar brasileirismos e argentinismos é uma tarefa constante na constituição desse eu estrangeiro. O texto é traduzido também como forma de lidar com as saudades, nesse caso específico, de meu pai. A história em quadrinhos de que trata o texto me remete ao velho, à já citada biblioteca, à casa onde cresci. Nela há argentina, literatura, história em quadrinhos, detetive particular e futebol. Tudo isso é, de certo modo, para mim, meu pai. Traduzo então como forma de lidar com as distâncias entre estas duas culturas que trato de plasmar; e entre eu e meu pai, corresponsável pelo interesse literário que me trouxe até aqui.
*Em seu livro publicado por El Hotel de las Ideas, Juan Sáenz Valiente oferta um desenho que o confirma como um dos melhores desenhistas do país, e uma sólida história que segue as peripécias de um detetive particular envelhecido e em má forma.

Há uma teoria que sustenta que na Argentina o gênero dos super-heróis é impossível. Que os leitores não podem aceitar a idéia de um encapuzado nacional fazendo o bem desinteressadamente, sem aproveitar-se da ocasião para se dar bem. Algo similar poderia ser dito do clássico policial noir. Alguém pode imaginar um detetive particular à la Chandler? Difícil. Por isso, entre muitos outros motivos, é que La Sudestada, de Juan Sáenz Valiente e publicada por El Hotel de las Ideas, é um grande livro. Porque o quadrinista se sentou com um autêntico detetive particular argentino para saber como trabalha, aprender truques do oficio para obter dados de gente desprevenida e, além disso, para que diabos o contratam. Com isso fez uma grande, grande história em quadrinhos. Porque La Sudestada é, antes de mais nada isso: uma grande história em quadrinhos argentina. Com uma história sólida e com um desenho que confirma que o (ainda) jovem Sáenz Valiente é um dos melhores desenhistas dos que dispõe o país. O que não é pouco, em um país repleto de desenhistas excepcionais.
La Sudestada conta as peripécias de um detetive particular envelhecido e em má forma que é chamado a averiguar por que uma importante (e já madura) coreógrafa de dança contemporânea se reclui quase que diariamente em uma ilhazinha de Tigre. Com esse ponto de partida já batido, o autor constrói uma história interessante e sólida, narrada com um tempo quadrinístico impecável, e habitada por personagens de atratividade e verossimilitude pouco freqüentes. Que o detetive Jorge é um cínico por conta das más experiências se percebe facilmente, porque qualquer leitor conheceu alguém assim. E que o empresário que o contrata para seguir sua esposa é um aproveitador, também se identifica rápido. E Sáenz Valiente não tem que dizer “esse é um aproveitador”, os personagens sua índole por si mesmos.

Mas além da história, é seu desenho excepcional que faz o livro ainda mais redondo. Não há muitos desenhistas que possam captar o ar de Buenos Aires como Sáenz Valiente, tampouco há muitos que possam plasmar seus habitantes tão bem quanto ele. Quase se pode dizer que sua prática não é o desenho naturalista, mas o essencialista. É desses que em cada traço sobre a folha colocam um pouquinho de verdade. Cada cena em que Jorge, em sua vida privada, joga uma peladinha de futsal com seus amigos, é quase uma revelação. Porque o autor não coloca um protagonista boa pinta com seus amigos jovens. Longe disso, coloca o decadente Jorge junto a seus amigos veteranos, em geral barrigudos e pouco atraentes, mas muito verdadeiros em seu toque preguiçoso para passar a bola, no pézinho estirado do goleiro em sua reação indolente, e nessa rede de gol pequeno que veste a bola porque não está nunca bem esticada. Juan Sáenz Valiente vê esses detalhes como ninguém e é capaz de plasma-los como nenhum. Carlos Nine diz que Sáenz Valiente gosta de desenhar velhos, que presta atenção neles. É assim mesmo. A parte da festa a fantasia o confirma.
Além desses retratos beirando a perfeição, também oferece lições de narrativa. A cena que abre o livro, com a experiente protagonista executando seu espetáculo em cena, ou qualquer um dos ensaios da investigada, são aulas sobre como mostrar o movimento da dança contemporânea em quadrinhos com seqüências convincentes. As passagens oníricas em que Jorge se vê perturbado, ensinam outro tanto.
Sáenz Valiente já havia mostrado seu talento em Sarna, junto a Carlos Trillo, ou em El Hipnotizador, junto a Pablo de Santis. E, embora tenha outros livros como único autor, em nenhum deles havia alcançado a cota de qualidade que exibe em La Sudestada. Sem dúvidas um dos melhores quadrinhos do ano.
* Texto original em espanhol, publicado no Jornal Página12 em 1 de julho de 2015. Disponível em http://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/espectaculos/18-35951-2015-07-01.html
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